domingo, 7 de dezembro de 2008

A cor da pele está no sangue


A cor. Da diferença.


brancos são tão pretos-brancos

pretos são tão brancos-pretos

Quanto mestiço-branco-preto somos?

Tem cor a vergonha da tua raça?

Quantos se dizem mestiços quase brancos

Outros pensam ser quase pretos

Quase mestiços filhos de pretos;

Pretos sem mátria, brancos sem berço!

Pretos pop favelados em guetos

brancos nus em terra estrangeira

Numa américa sem cara, num país sem pudor

Mas um dia hei de ver brancos bater tambor

Em banto falar tupy or not to be

Malés sambar esperanto, sem pranto ou farrapos

preto-azuis; mulatos de olhos brancos

Toda mulher branca, preta, amarela, é mulher!

Todo homem branco, preto, mestiço, é homem!

homens e mulheres diferentes, não tão diferentes

não tão livres assim

Quilombo, Palmares, Liberdade quem é teu dono?

Nas senzalas modernas, sobrados urbanos

(o chicote é a lei)

Quando romperemos com a herança maldita que nos fere

violenta e crava?

Quando seremos de verdade um povo em pele

voz, sem correntes?

Quando passaremos em verdade a história a limpo

preto no branco!?

Qual o seu preço?


Uma analogia entre o antigo comércio de escravos e a atual exploração da miséria pelo marketing social, que forma uma solidariedade de fachada. No século XVII um capitão-do-mato captura um escrava fugitiva, que está grávida. Após entregá-la ao seu dono e receber sua recompensa, a escrava aborta o filho que espera. Nos dias atuais uma ONG implanta o projeto Informática na Periferia em uma comunidade carente. Arminda, que trabalha no projeto, descobre que os computadores comprados foram superfaturados e, por causa disto, precisa agora ser eliminada. Candinho, um jovem desempregado cuja esposa está grávida, torna-se matador de aluguel para conseguir dinheiro para sobreviver.


Sem demagogias, indico a obra fílmica por se tratar de mais um contundente e bem sucedido trabalho do Sérgio Bianchi. Livre adaptação do conto Pai contra mãe, de Machado de Assis, entremeado por pequenas crônicas de Nireu Cavalcanti e registros extraídos dos autos do Arquivo Nacional, é de fato, leitura(vídeo) obrigatória(o), indicada(o) inclusive para trabalhos em sala de aula. Rende uma boa provocação.



Minha diáspora ferve...

Via Sacra

Em pleno terreiro a estaca adorna

Impõe-se à imaginação dos santos,

Sacrossantas imagens postas,

Do alto Rosário dos pretos

A missa avança palmo a palmo

O chão de Pedras fosca

Construídas a ferro e fogo,

Com o sangue da escravidão,

A matraca corta os becos,

Vielas, praças, puteiros

A anunciar os terços da procissão

O cruzeiro a vista encobre,

Divisa a dor dos que trinam,

Sob o ricochetear dos chicotes!

ischt!





Elas

Estão por aí. Mergulhadas no anonimato, na escuridão, a flertar marginálias. Estão e sempre estarão entre nós, porque nossa covardia é maior que um simples ato de coragem. Seres noturnos debaixo das luminárias, em campanha por comida e acolhimento. Crescerão mulheres-meninas, obtusas, sem sombra, maqueadas para esconder a dor da vida ordinária. Sempre armadas feito concreto e aço, grávidas sem gozo sob o risco do baton.

LAV

Confiram o vídeo da Elisa Lucinda

O futuro é vortex


A revolução das frutas


Uma manga dentro de uma redoma de vidro. Isto mesmo caros leitores. Um fruto avermelhado, ovóide, sem mácula alguma, linha ou sulco em seu dorso, nenhuma nodoa. Perfeita aos olhos dos visitantes que a admirava estupefatos como se fosse o último artigo natural comestível na face da terra. Possuía uma circunferência em torno de 60 centímetros e delicada silhueta e tratada sem agrotóxico. Na redoma ao lado, outro fruto, uma banana. Sua forma fálica atraia a atenção de algumas mulheres, que absortas contemplavam-na sinestesicamente. Era totalmente amarelada e sem pintas ou riscos da colheita. Um espetacular esquema de segurança foi montado em torno das peças, talvez por ser raras e, portanto, muito valiosas. O circuito interno cobria todo o salão, dois homens armados faziam a segurança, por último as redomas eram de vidro temperado, inquebrável, as bases de titânio – a prova de furtos.

Pessoas passeavam enfileiradas com olhos pregados nas duas frutas. Alguém dizia: será resultado de laboratório? Outro indagava: será trangénicas? E mais outra: deve ser artificialmente coloridas, produzidas com massa de pão ou por algum notável taxidermista! As cogitações eram inúmeras, mas ninguém ali, sabia a origem das frutas.

Um especialista em biocultura toma a frente da multidão e resolve discorrer sobre os artefatos. Estes dois achados senhoras e senhores compõem junto a outras peças de artes deste museu, um trabalho de pesquisa e busca pelos quatro cantos do planeta. Imaginem vocês, quês estas duas frutas estão avaliadas em alguns milhões de damascos*, e concorrem com obras de pintores famosos como Picasso, Andy Warhol e Portinari, foram achadas em terras do Brasil, na América do Sul, e foi preciso inclusive a intervenção dos juizes supremos e da esquadra militar do Norte para resgatar estes exemplares dos bárbaros. Trata-se, portanto, senhoras e senhores, de esforços empreendidos tanto pela natureza, quanto pelo homem para apresentar estas valiosas matrizes à civilização. São dois modelos de oportunidades para a ciência transgênica salvaguardar o futuro da humanidade. As pessoas ali, imobilizadas pareciam estar diante de um acontecimento singular. O especialista continuou. As nossas analises citogenéticas detectaram nas duas estruturas algo chamado maturas matrizes. O que revela um alto potencial de multiplicação em série desses frutos a partir de células para servir de base alimentar geneticamente modificada na aceleração do metabolismo aos fenótipos cro-magon in vitro. Além disso, estimamos uma larga produção a partir destes exemplares nativos para consumo da nossa comunidade Pretoriana. Podemos ainda dizer que será a moeda do futuro, valendo tanto quanto o ouro ou diamante, mas, gostaríamos mesmo de lhes apresentar novas descobertas. Todos os visitantes seguiram por um corredor a meia-luz, em direção a outra sala, desta vez guardada por um sistema de vigilância mais severo; uma espessa porta de metal, feixes de raios lasers para controlar o acesso, câmeras e guardas por todos os lados. O especialista ao imprimir o polegar num decodificador digital, desligou o sistema e todos acessaram a câmara secreta. Um salão imenso com paredes e chão em ladrilhos branco sem janelas ou condutores de ar, mais cinco redomas de vidros estavam dispostas como compotas de doces ou jóias, protegidas de ataques de qualquer natureza. Nas placas de prata em cada redoma havia nomes como Inga uruguensis, Psidium guajava, Genipa americana, Eugenia uniflora, Euterpeoleracea, para designar o Ingá, a pitanga, a goiaba, o palmito e jenipapo. Segue o especialista. Aqui, senhoras e senhores, vocês irão testemunhar espécimes extintas há quase cinco décadas, conservadas por estabilizantes e conservantes, extraídas da região Amazônica. Seus elementos servem hoje as nossas indústrias de medicamentos e alimentos sintéticos, tudo a partir de combinações botânicas e genéticas. Um feito para a ciência da biotecnologia. Um espanto cobriu o lugar enquanto os visitantes circulavam as caixas de vidro com ares ruidosos de curiosidade. De repente uma pergunta saltou. O senhor sabe dizer em quanto está avaliado cada exemplar desses? O especialista sorriu friamente e retrucou: não tem classificação em valores. Outra pergunta foi lançada: e porque não se explora naquelas terras mais desses frutos? Eram os últimos, atalhou o especialista. Uma mulher aproximou-se dele e fez-lhe uma proposta: o senhor poderia facilitar-me a venda de um desses, qualquer um? Eu lhe daria uma fortuna, trocaria por esmeraldas ou diamantes, sou muito rica! O especialista olhou enfeado para a mulher e deixou-a de lado. – Agora voltemos todos ao salão. Ninguém se movia. Um grupo agarrou uma das redomas e tentou movê-la a todo custo, batiam e forçavam, mas nada acontecia. A guarda foi acionada e todos foram postos para fora da sala. Novamente um outro grupo atacou as calotas esféricas da banana e da manga. Um tumulto generalizado tomou conta da ante-sala. Socos, ponta-pés, choques, gás de mostarda e uma luta para alçar as frutas. O especialista foi sufocado, os guardas foram encurralados e a policia acionada. O prédio foi invadido e a situação controlada pela Corps, polícia distrital. Todos foram contidos em camisas de força e conduzidos para fora do museu enquanto bradavam o nome das frutas com certo desespero diante da milícia.

Daquele dia em diante as visitas ao museu seriam suspensas. As frutas estariam à mostra através de programas televisivos, para evitar novos ataques, o qual o especialista chamou de surto generalizado. Dias depois da exibição dos programas, uma onda de pessoas sitiou o museu, deflagrando um confronto armado contra a Corps. As dependências do museu foram tomadas pela massa ensandecida que sabotou o sistema central de força e abateu os guardas. As salas foram saqueadas e as frutas devoradas por poucos que se engalfinhavam para saborear um pedaço dos últimos exemplares. O especialista desolado no meio da calçada mirava o caos no interior do prédio enquanto sacava do bolso o seu almoço, uma pasta sintética de cereal em cápsula, olhou com enjôo e engoliu a seco.


* Damascos – moeda local




Para todos e para ninguém


Recomendo a leitura de Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche. Um livro para todos e para ninguém - diz o autor. A obra aponta para a idéia central de homem-comum e super-homem. São contos metaforizados sobre a existência humana, altruísmo e autopiedade. Tece ainda, ferrenhas críticas a respeito do cristianismo catolicista ortodoxo, culminando na derrocada dos ídolos de barros e na pronta idéia de que o homem realizado é um semi-deus (e que neste sentido deus está morto) Todo o discurso é balizado pela moral nietzchiana como elemento regulador da vontade de potência, numa contraposição a fragilidade de caráter, ignorância e servilismo humanos...

LAV

O principio do fim

VENTRE SECO

Nasci aos seis meses. Contrariando prognósticos e expectativas dos que duvidaram da minha existência. Nasci de um desaforo, um desabafo mudo, quase invertebrado. Geléia de gente, espirro fetal e dolorosa experiência para a mulher que me cuspiu para fora do ventre feito excremento; uma cagada diante da equipe médica que absorta olhava a criaturinha resultado de um experimento laboratorial. Parecia mais um personagem da famosa ilha do Dr. Moreau; um germe, frágil ser em formação, deslizante pelo espiral da vida e mãos do progresso da ciência medica.

Difícil respirar. Foi preciso tubos durante semanas para me estimular à vida. Um ser transgênico em pé de guerra com a morte. Meus primeiros suspiros foram sinais de otimismo para as enfermeiras enquanto minha mãe convalescia no leito. Quase a matei da mesma forma que fizera comigo. De algum modo essa tragédia metafísica seria a resposta ao sentimento de rejeição às seguidas tentativas de fulminar-me ainda dentro do seu útero.

Desde a minha concepção fui indesejado. Carregado por 24 semanas qual um saco podre em seu ventre seco. Sentia-me um fardo, peso morto sacolejando dentro do liquido amniótico. Até ser evacuado consumi indigestamente do álcool a barbituricos, passando por pílulas do dia seguinte, maconha, cocaína e até Citotec. Senti-me uma ulcera cravada em seu interior. Ouvia vozes extra-uterinas que diziam que iríamos a óbito, os dois, caso ela continuasse a administrar as ações medicamentosas. Por vezes, surtava dentro do invólucro. Ela reagia com mais remédio diante da cólica. De todo modo essa degenerescência tanto dela quanto minha revela assombrosamente o inconsciente pacto firmado entre nós. Pacto de alguém que metabolizava numa mistura para bolo entre componentes químicos ingeridos.

Estranhamente vinguei da arvore ameaçada, resultado do ódio nuclear e violência maternal. Fiz-me um escudo, insubordinei-me, recriei-me dentro da adversidade uterina qual um Alien. Como um anticorpo ataquei ferozmente os meus opositores, os quais conhecemos por corpos invasores; venenos farmacológicos e ervas medicinais que mais tarde me serviriam de absurda dieta alimentar.

Tive ao nascer um sinal em forma de pústula nas costas e pele manchada. Uma lente examinou-me, uma agulha perfurou-me a epiderme e após exames minuciosos constatou-se a razão do quadro clínico: herdeiro de uma doença venérea congênita de nome sífilis, minha invisível irmã siamesa, consangüínea, a única companheira durante os meses de sofrimento.

Imaginar aquele apêndice de gente, sem movimento, sem choro e contraído diante da luz do mundo. Saído da escuridão para a sobrevida, Internado numa maternidade sem o leite da minha mãe que se recuperava ao meu lado. Nos olhavamos perdidos entre o espaço da cama e incubadora. Éramos dois seres vitimas da mesma fatalidade: eu, reprovado por ela, ela, execrada pelo mundo e família. Família, não sabia o significado disto, muito menos tinha uma. Meu pai, homem qualquer havia servido apenas com seus gametas e treponema.

Há quem diga que foi obra do acaso, mas o fato é que há certas coisas que não se explicam. Eu sou uma delas. Meu nascimento foi a vitória dos rejeitados, dos desprezados e abandonados, um golpe sobre a hesitação humana. Um quase natimorto, quasimodo, filho do óvulo e do zigoto, quase feto abortado num açougue desses muitos que há por aí. Por isso, parafraseando Neruda, digo: para viver, nasci!