domingo, 7 de dezembro de 2008

O principio do fim

VENTRE SECO

Nasci aos seis meses. Contrariando prognósticos e expectativas dos que duvidaram da minha existência. Nasci de um desaforo, um desabafo mudo, quase invertebrado. Geléia de gente, espirro fetal e dolorosa experiência para a mulher que me cuspiu para fora do ventre feito excremento; uma cagada diante da equipe médica que absorta olhava a criaturinha resultado de um experimento laboratorial. Parecia mais um personagem da famosa ilha do Dr. Moreau; um germe, frágil ser em formação, deslizante pelo espiral da vida e mãos do progresso da ciência medica.

Difícil respirar. Foi preciso tubos durante semanas para me estimular à vida. Um ser transgênico em pé de guerra com a morte. Meus primeiros suspiros foram sinais de otimismo para as enfermeiras enquanto minha mãe convalescia no leito. Quase a matei da mesma forma que fizera comigo. De algum modo essa tragédia metafísica seria a resposta ao sentimento de rejeição às seguidas tentativas de fulminar-me ainda dentro do seu útero.

Desde a minha concepção fui indesejado. Carregado por 24 semanas qual um saco podre em seu ventre seco. Sentia-me um fardo, peso morto sacolejando dentro do liquido amniótico. Até ser evacuado consumi indigestamente do álcool a barbituricos, passando por pílulas do dia seguinte, maconha, cocaína e até Citotec. Senti-me uma ulcera cravada em seu interior. Ouvia vozes extra-uterinas que diziam que iríamos a óbito, os dois, caso ela continuasse a administrar as ações medicamentosas. Por vezes, surtava dentro do invólucro. Ela reagia com mais remédio diante da cólica. De todo modo essa degenerescência tanto dela quanto minha revela assombrosamente o inconsciente pacto firmado entre nós. Pacto de alguém que metabolizava numa mistura para bolo entre componentes químicos ingeridos.

Estranhamente vinguei da arvore ameaçada, resultado do ódio nuclear e violência maternal. Fiz-me um escudo, insubordinei-me, recriei-me dentro da adversidade uterina qual um Alien. Como um anticorpo ataquei ferozmente os meus opositores, os quais conhecemos por corpos invasores; venenos farmacológicos e ervas medicinais que mais tarde me serviriam de absurda dieta alimentar.

Tive ao nascer um sinal em forma de pústula nas costas e pele manchada. Uma lente examinou-me, uma agulha perfurou-me a epiderme e após exames minuciosos constatou-se a razão do quadro clínico: herdeiro de uma doença venérea congênita de nome sífilis, minha invisível irmã siamesa, consangüínea, a única companheira durante os meses de sofrimento.

Imaginar aquele apêndice de gente, sem movimento, sem choro e contraído diante da luz do mundo. Saído da escuridão para a sobrevida, Internado numa maternidade sem o leite da minha mãe que se recuperava ao meu lado. Nos olhavamos perdidos entre o espaço da cama e incubadora. Éramos dois seres vitimas da mesma fatalidade: eu, reprovado por ela, ela, execrada pelo mundo e família. Família, não sabia o significado disto, muito menos tinha uma. Meu pai, homem qualquer havia servido apenas com seus gametas e treponema.

Há quem diga que foi obra do acaso, mas o fato é que há certas coisas que não se explicam. Eu sou uma delas. Meu nascimento foi a vitória dos rejeitados, dos desprezados e abandonados, um golpe sobre a hesitação humana. Um quase natimorto, quasimodo, filho do óvulo e do zigoto, quase feto abortado num açougue desses muitos que há por aí. Por isso, parafraseando Neruda, digo: para viver, nasci!


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